quarta-feira, 9 de maio de 2012

ÍDOLOS DA MPB

É difícil saber o quanto João Gilberto terá de fato aprendido nas aulas de composição do professor Armando, que tinha o coração grande o bastante para abarcar Stockhausen e Pixinguinha na mesma sala de aula, mas cujo interesse maior recaía sobre o primeiro. Não será exagero, no entanto, imaginar que a voz, os gestos e o cabelo branco dele ressoam até hoje nesse anticancioneiro brasileiro que é a obra gravada - e, algumas vezes, com sorte, até presenciada ao vivo - de João Gilberto.

Falar de João Gilberto, há pelo menos duas décadas, virou um exercício litúrgico para os críticos, tanto quanto para o público em geral. João é o santo da pureza na música popular brasileira, uma divindade excêntrica e discreta.

João Gilberto não muda nunca, o que para alguns é uma fraqueza, mas para ele, uma virtude. Tem uma idéia da música que é essencialmente a mesma há quarenta anos e cada novo disco é mais uma forma de refinar e polir essa pedra essencial do cantor. Talvez não seja possível dizer que está cantando cada vez melhor. Mas é cada vez mais ele.

Há duas obsessões que vão se traduzindo nesses milhares de compassos cuidadosamente ensaiados, até o ponto da maior liberdade: a linha e o ar. O que João Gilberto faz como ninguém é reinventar uma canção como uma seqüência nova de linhas, de comprimento e perfil insuspeitado. Preste atenção à quantidade de sílabas ligadas sem nenhuma interrupção. Em "Sampa", por exemplo, ou "águas de Março". Ou em "Eu Sambo Mesmo", onde o final de um verso e o início de outro ficam ligados: "Mexe com a gente / Dá vontade de viver / A minoria diz que não gosta / Mas gosta" - tudo isso numa linha só.

O verdadeiro rito litúrgico da nossa música acontece, então, salvo segunda ordem, hoje à noite. é estranho pensar que um país de expressão tão exuberante - mais que um país: a Bahia - tenha produzido o mais comedido mestre da introspecção. Que ouça quem tiver ouvidos para ouvir: "A minoria diz que não gosta / Mas gosta / E sofre muito / Quando vê alguém sambar..." Quem já o viu, lembra para sempre do banquinho, do violão e da voz: macia, tranqüila, cada palavra gentilmente convidada a deixar o conforto de um sussurro, e se transformar na felicidade da canção. Seu nome é João Gilberto e ele é o professor de todos nós.

João Gilberto é o cantor mais livre de cinismo que se pode imaginar.