Quando Tom Jobim afirma que Carlos Lyra é o grande "conhecedor dos caminhos", o
mestre não exagera. Excepcional melodista, Lyra nasceu historicamente junto com
a bossa nova. As melodias inspiradas resistem ao tempo, mostrando que o
verdadeiro caminho é a independência artística. Lyra e a bossa nova praticamente
se confundem, mas o autor de Primavera sempre preservou a sua identidade
musical. A primeira música de Lyra a ser gravada em LP - Criticando, registrada
em 1956 pelo conjunto Os Cariocas - é uma espécie de precursora da clássica
Influência do Jazz e já mostrava que o autor manteria sua autonomia em relação à
velha bossa, embora a história o colocasse como um dos líderes naturais do
movimento (se é que se pode falar em "movimento").
A identidade de Lyra
revelou-se nítida logo no primeiro disco, Carlos Lyra - Bossa Nova, lançado em
1959. Uma tal Maria Ninguém já impunha presença ao lado de clássicos como Quando
chegares, Menina e Rapaz de bem (foi Lyra o lançador desta composição de Johny
Alf). O universo musical de Lyra já não estava restrito aos deliciosos sal, sol
e sul cariocas. Ainda que isso ficasse claro somente na segunda e divergente
fase do - vá lá - movimento.
A dicotomia que germinava latente entre os
bossa-novistas brota mais fortemente a partir de 1961. Neste ano, Lyra lança seu
segundo disco com jóias como Minha Namorada, Você e eu e Coisa mais linda. Mas a
cabeça (e o violão) já caminhava em outra direção. No mesmo ano, ele é um dos
fundadores do Centro Popular de Cultura, o popular CPC, da UNE (União Nacional
dos Estudantes). O laço cada vez mais apertado com o teatro e o cinema (que na
época era Novo) politiza a obra de Lyra. E nada aconteceu assim tão de repente.
Em 1960, ele já havia composto a trilha da peça A mais valia vai acabar, seu
Edgar, de autoria do combativo Oduvaldo Vianna Filho. Sem falar na sua posterior
atuação junto à diretoria do Teatro de Arena.
Estava pronto o terreno
para que Lyra transformasse a bossa do amor, do sorriso e da flor numa música
mais pé no chão, em sintonia com uma realidade que já começava a dar os sinais
da inconstância política. Lyra entrou logo para a turma dos dissidentes, dos
engajados, desafinando todos os coros formados pelos contentes com a estética
cool (e já distante naquele momento) do canto e da poesia de João Gilberto e
Cia. O terceiro disco de Lyra, lançado em 1963, já trazia Influência do Jazz e
Aruanda. O samba deixava o apartamento de Zona Sul para subir o morro. Na
contramão, Zé Keti, João do Vale, Nelson Cavaquinho e Cartola iam para o asfalto
(e para o CPC) mostrar que nem tudo eram flores no Brasil de 1963 e 1964. Lyra
já sabia disso. A consciente Canção do Subdesenvolvido - composta por ele em
1963, em parceria com Chico de Assis - já explicitava uma ideologia incômoda
para setores mais conservadores.
O tempo fechou com o golpe militar de
1964 e a saída, para Lyra, foi o auto-exílio. De 1964 a 1971, Lyra esteve fora
do Brasil. No exterior, ele percebeu que os dois universos bossa-novistas não
eram tão incompatíveis assim.
Tocou com Stan Getz nos Estados Unidos e
gravou dois discos no México. E, no entanto era preciso cantar e tocar também no
Brasil. De volta a seu país, Lyra regravou seus próprios clássicos. A massa
alienada não se esquecia das lindas melodias bossa-novistas, mas a consciência
do compositor gritava mais alto. Depois de três discos lançados sem o mesmo
impacto de seus antecessores, o autor de Feio não é bonito radicaliza com o
incisivo Herói do medo (Continental, 1974) - disco de letras propositalmente
dúbias, que tentavam lembrar que, enquanto a multidão driblava a consciência com
os gols da seleção e os lances das novelas de televisão, gente era torturada e
morta na luta pela democracia. Mas a pressão era grande.
Resultado: um
disco censurado e um segundo auto-exílio. Em 1974, Lyra foi para Los Angeles,
retornando dois anos depois para cantar em incessantes "shows", as melodias que
todos ainda queriam ouvir. O "revival" parece interminável. Não chegava de
saudade. Lançado em 1984, o "show" 25 Anos de Bossa Nova dura cinco anos e
resulta no homônimo disco ao vivo, nas lojas em 1987. Preso a uma época áurea,
Lyra segue repetidas vezes os caminhos elogiados por Tom Jobim. E esses caminhos
são, e sempre serão, trilhas das mais inspiradas da música brasileira.
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