A música e os aviões sempre tiveram muito em comum na
vida de Beto Guedes. Quando pegou num instrumento ela primeira vez - aos oito
anos, em Montes Claros (MG), sua cidade natal - ele não seria capaz de adivinhar
que um dia voaria tão alto na carreira de músico. E nem que conseguiria pisar
num avião de verdade - seu medo de voar contrastava com a obsessão por
aeromodelismo. O tempo livre de Beto sempre foi dividido entre os aviõezinhos de
brinquedo e a paixão pelos instrumentos herdada do pai, Godofredo Guedes, músico
e compositor, responsável pela maioria dos bailes e serestas de Montes Claros.
O gosto pela música estava diretamente ligado aos Beatles. Em 1964, aos 12
anos, quando o quarteto de Liverpool já era febre no mundo inteiro, Beto,
morando em Belo Horizonte, juntou-se aos vizinhos para formar o grupo, The
Bevers (com repertório dedicado aos Beatles, obviamente). Os vizinhos, no caso,
eram os irmãos Márcio, Yé e Lô Borges. A Beatlemania durou toda a adolescência e
ainda incluiu um outro grupo, Brucutus, que animava festinhas durante as férias
em Montes Claros. No final da década, mais amadurecidos, Beto e Lô começaram a
compor e participar de festivais. Em 1969, quando foram ao Rio participar do
Festival Internacional da Canção com a música "Feira Moderna", bateram na porta
do conterrâneo Milton Nascimento. A acolhida de Milton não poderia ter sido mais
proveitosa. A amizade e a admiração profissional mútua fizeram com que ele
convidasse Beto Guedes para participar do antológico LP "Clube da Esquina", de
1971. Tocando baixo, guitarra, percussão e fazendo vocais, Beto começava a
ganhar projeção junto com uma turma talentosa, que incluía nomes como Wagner
Tiso, Ronaldo Bastos e Toninho Horta.
A safra de novos músicos mineiros era completada por Flávio Venturini,
Sirlan, Vermelho, Tavinho Moura, entre outros, que Belo foi encontrar quando
decidiu voltar a BH. As gravadoras passaram a abrir os olhos e em 1973 a Odeon
resolveu bancar o LP "Beto Guedes/Danilo Caymmi/Novelli/Toninho Horta". A Beto,
coube um quarto do disco. Não era muito, mas para ele, era o suficiente.
Perfeccionista e naquela altura ainda muito inseguro, não conseguia acreditar no
valor de suas músicas, embora a gravadora já lhe acenasse com ofertas para
gravar um disco solo.
Quatro anos foi o tempo necessário para que criasse asas próprias. Em 1977,
ele finalmente levantou vôo, a bordo do LP "A Página do Relâmpago Elétrico". O
título foi sugestão do parceiro Ronaldo Bastos, depois que este viu no álbum de
um colecionador de fotos de aviões da 2ª guerra, uma imagem do avião "Relâmpago
Elétrico". Tá na cara que Beto, fanático por aviõezínhos de brinquedo, adorou a
sugestão. O disco, que tinha a colaboração de vários amigos mineiros, chamou a
atenção por revelar seus dotes como cantor, já que até então, ele era conhecido
apenas pela versatilidade de multiinstrumentista. O tímido sucesso das músicas
"Lumiar" e "Maria Solidária" foi suficiente para que o disco chegasse às 21 mil
cópias vendidas, três vezes mais do que calculava a gravadora.
Mal sabiam eles, que "Lumiar" viraria um dos hinos da juventude cabeluda
paz-e-amor e pró-natureza. E que Beto seria um dos ídolos dessa geração,
principalmente após o lançamento de seu segundo álbum, "Amor de Índio". A
faixa-título, dele e de Ronaldo Bastos, integrava o espírito de todo o disco.
Versos como "A abelha fazendo o mel/Vale o tempo em que não vôou" ou "Todo dia é
de viver/Para ser o que for/E ser tudo", segundo Beto, expressavam o lado
primitivo e puro que ainda havia em cada uma das pessoas, como um canto de
louvor à vida.
Quando lançou seu terceiro disco, "Sol de Primavera", em 1980, já tinha uma
legião de fãs no eixo Rio-São Paulo. Mas nunca abandonou a mineirice que se
tornara sua marca registrada. Botava o pé na estrada - de carro, porque não
perdia o medo de voar - , mas continuava morando em Belo Horizonte, onde tinha a
tranqüilidade para se dedicar aos brinquedinhos voadores e às novas composições.
Era na janela, esperando o anoitecer que as idéias surgiam. E amadureciam tanto,
que seus álbuns demoravam no mínimo dois anos para sair. O quinto deles, "Viagem
das Mãos", de 1984, foi um marco em sua carreira. Àquela altura, Beto Guedes já
era um artista de primeira linha, com vendagens oscilando entre 50 e 60 mil
cópias e uma marca sonora registrada. Mas este álbum trazia a canção que, junto
com "Amor de Índio", seria o maior sucesso de sua carreira: "Paisagem da
Janela", de Lô Borges e Fernando Brant. Ao mesmo tempo, representava o estouro
nacional do compositor, que naquele momento superava o medo de voar e, pasmem,
já cogitava pilotar um ultraleve construído por ele mesmo!
A viagem de Beto alcançara as alturas, e o ápice acabou sendo "Alma de
Borracha", que, lançado em 1986, finalmente lhe rendeu um Disco de Ouro e o
reconhecimento no exterior. O título do disco (tradução de "Rubber Soul")
homenageava os Beatles, enquanto o repertório trazia uma grata surpresa: a faixa
"Objetos Luminosos", primeira parceria com seu mentor e padrinho musical Milton
Nascimento. O Rio de Janeiro - cidade onde fez shows antológicos e sempre teve
recepção calorosa do público - foi o local escolhido para a gravação de um disco
ao vivo, no final de 1987.
Ao todo, foram cinco anos longe dos estúdios. Em 1991, Beto Guedes voltou a
gravar. Com a meticulosidade de sempre, ele cuidou de cada detalhe de "Andaluz",
seu oitavo disco e último contrato com a EMI-Odeon. Um disco em que o uso de
sintetizadores dava um chega pra lá em alguns instrumentos barrocos tão
utilizados pelo compositor em trabalhos anteriores. No ano seguinte, era de se
esperar que Beto caísse na estrada mais uma vez. Mas ele preferiu trocar o
violão pelo macacão de mecânico e passou a dedicar cada vez mais à sua paixão
por aviões, só que construindo um monomotor de verdade. Foram mais sete anos
restritos a shows esporádicos e muita reflexão.
Até que, lá no alto, sobrevoando os céus de Minas, ele sentiu a sensação de
quem venceu o medo de um desafio e se tornou dono de seu próprio destino. Olhou
para o futuro e viu, no horizonte infinito, música. Os versos já estão escritos.
Mineiramente, Beto Guedes está de volta.
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